terça-feira, 30 de junho de 2015

O garoto dos sapatos de camurça velha;



Era comum que ao chegar aos sete anos toda criança fosse para a escola. Mas essa regra não se aplicava ao vilarejo onde nosso garoto morava, aliás, nenhuma lei, a não ser a dos próprios moradores, chegava ali. Era um tempo que a ostentação era simplesmente poder calçar alguma coisa para se deslocar até a escola e nosso garotinho, infelizmente, não tinha esse privilégio. Seu caderno eram folhas de papel de pão passadas com ferro de brasa, costurados cuidadosamente por sua mãe, uma a uma; seu lápis era o mesmo que seu irmão usou no ano anterior; sua mochila um saco de estopa com uma alça, também improvisados pela mãe e sua merenda, bem, não era todo dia que ele podia levar alguma coisa, mas de vez em quando uns bolinhos de milho salvavam suas lombrigas de o devorarem por inteiro.
Nosso garoto estava ansioso pelo seu primeiro dia de aula. Ele sonhava em ser locutor de rádio. Seu divertimento predileto era parar debaixo da janela da casa do sítio vizinho, de um senhorio com propriedades e cabeças de gado, para ouvir as rádios novelas que a esposa do homem ouvia no fim da tarde ou também, ajudar seu pai nas plantações de milho. Imaginava que entre aqueles milharais que tinham o dobro de sua altura, iria encontrar dragões e seres mitológicos como uma mula-sem-cabeça, os quais teria que enfrentar bravamente, mas isso é outra história.
O dia chegou! Sua mãe o despertou com o cantar do primeiro galo da madrugada, tudo ainda estava escuro, a caminhada era longa. Tomou um banho de água gelada para despertar, lavou as orelhas e os pés como se fosse encontrar a rainha da Inglaterra, abotoou sua camisa de segunda mão, vestiu suas curtas calças, bebeu um copo de leite recém tirado e prostrou-se de peito inflado na porta da casa,  transpirando ansiedade.
Seu pai e sua mãe, com os olhos marejados lhes entregaram um pequeno pacote, embrulhado em papel pardo, com um nó de sisal. Um simples pacote, mas um grande presente. O menino ficou estático e confuso, pois nunca havia recebido um presente, não embrulhado e tão esperado como aquele. Sim, seus sapatos. Todo filho ganhava um par de sapatos para ir para a escola. Eram os mesmos que seu irmão usou, que por sua vez, era o mesmo que seu primo antes mesmo dele saber seu próprio nome usou. Mas parece que nada importava. Aquele sapato velho de camurça encaixou em seu pé como se fosse um sapato de verniz, feito para ele. Ele se sentia homem e parecia esquecer que havia alguns quilômetros até chegar a cidade, e finalmente à escola. 

Na carroça, seus pés no ar balançavam de um lado para o outro e o sorriso encantava o pai que por alguns minutos esquecia a falta de dinheiro e de condição. Mesmo com suas poucas letras aprendidas, o pai observava o garoto e percebia que o real significado do amor estava realmente nos simples e pequenos gestos de afeto e incentivo que ele dava ao filho. Chegando na escola, o beijou na testa e observou o caminhando até o portão, onde acenou com os pés a felicidade de estar dando os seus primeiros passos. Os filhos são como pássaros, criamos para alçar voo, e quão belo é, ver que eles levam consigo, os pequenos sapatos de camurça velha e todo o amor por toda a vida.
 

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Dia de Cão;


Aurora não estava em um bom dia, dentre as muitas coisas que haviam acontecido naquela quarta-feira cinza, um banho de chuva não planejado, seu casaco velho, mas predileto, estava sujo de massa de tomate e seu celular estava sem bateria e além de tudo, iria em silêncio para casa. Ah, e como eu poderia esquecer?! Sua chefe, sim, aquele estereótipo de chefe que ninguém gosta havia lhe repassado algumas, diga-se de passagem todas, tarefas de seu colega que havia entrado de férias. Estava sendo um dia do cão, exceto pela hora que pode bater seu ponto e um leve, tímido e cansado sorriso soou um leve 'amém'. Aurora tentava em meio a chuva e uma poça e outra de água cantarolar alguma música para se distrair, mas parece que o 'cão-dia' havia tomado conta de seu ser.
Ela entrou no ônibus, desejou boa noite ao motorista e cobrador e se sentou do lado esquerdo dos bancos. O horário de pico já havia passado e ela pode sentar-se no lugar de sempre. Na janela de sempre. Parece que naquele pequeno quadrado de vidro, poderia passar horas filosofando e sendo ela mesma e foi nessa mesma parede transparente, que avisou um olhar fixo indo de encontro ao teu. Um rapaz nem alto e nem baixo, que chamou-lhe sua atenção.
O interesse mútuo dos dois olhares causou estranhamento e timidez e deu inicio a um jogo de olhares e feições. Ambos não sabiam disfarçar a vontade de se olhar. Assim seguiram pelo caminho todos e pelas curvas todas. Aurora sentiu no peito uma palpitação que deverás não sentia e se inflou seu ego e sua imaginação, com nomes, profissões e sonhos. O subconsciente de Aurora era muito fértil.
Não passou muito e o rapaz se levantou e deu sinal para que o ônibus parasse. Ambos se olharam mais uma vez entre os olhos como quem diz: Fica, vamos tomar um café! Mas parece que algo não lhes permitiu captar a mensagem. Ele desceu e olhou para a janela, abriu um largo sorriso para Aurora como quem dizia que foi um imenso prazer conhecê-la, e ela o correspondeu e se esqueceu de todas as coisas nem tão boas que havia passado durante o dia, havia ficado feliz pra cachorro.